Quando vai embora, a gente sente farta, mas depois, esquece
Longe da pátria vivo ieu distante
De meus irmão da minha mãe querida
Sofrendo tanto nesta frô da idade
aqui me espero terminar m’a vida
No çumitério é onde os morto dorme
onde meu corpo adormirá um dia
O mundo fica para quem tem sorte
a minha sorte lá na tampa fria
(Música cantada pelo finado Geraldo, marido de dona Eufrásia)
“Jariguka”, ou Eufrásia Ferreira, era a última mulher fluente na idioma guató (note-se que o gênero aqui é feminino mesmo, segundo o uso da palavra ‘idioma’ no português pantaneiro). A agora finada Eufrásia, cujo nome neobrasileiro também se dizia Frávia, morreu no dia 05 de setembro de 2021, internada no sistema público de saúde de Corumbá (MS).
Eufrásia estava internada desde o dia 31 de agosto com uma infecção que a fez perder muito sangue e com uma pneumonia que dificultava sua respiração. Dias antes de ser internada, tinham dado soro com medicamento e mandaram-na para casa. Seu filho de criação contou- nos que ligou para o posto de saúde para buscarem ela com ambulância, mas no posto disseram que tinham casos mais importantes a tratar. Quando o caso se tornou “importante”, a finada Eufrásia já estava obrando sangue. Várias vezes. No posto, não forneceram fraldas para ela, que já estava fraca, para manter alguma dignidade de asseio nestas condições. Certa vez, Eufrásia contou que ouvira o finado Getúlio (o Vargas) dizer que ela era a mãe do Brasil, pois era índia. Vivemos na Pátria Matricida por excelência.
Mais de uma vez nos despedimos de Eufrásia, ao finalizar mais um campo. Algumas vezes ela observou sobre nossa partida, sobre saudades: no começo sente farta, mas depois esquece. Para nós, vai ser difícil esquecer Eufrásia. Aliás, deverá ser impossível. E devemos fazer com que mais gente não esqueça dela, mesmo não tendo a conhecido. Desta vez, não nos despedimos e nunca mais nos despediremos.
Eufrásia não sabia quando tinha nascido, pois seus documentos foram tirados quando ela já era mulher feita. Sua identidade indicava uma data de nascimento “por rumo”, para fins burocráticos. Afinal, diz o Estado, se alguém ‘tá vivo deve ter nascido’. A /d͡ ʒaɾiguka/ nasceu em um aterro guató chamado /he-d͡ ʒ-ofad͡ ʒaho/ ou “o local dos jaós”. Cresceu nos afluentes e margens do Rio Paraguai e permaneceu no Pantanal até este ser cercado pelas fazendas que expropriaram tantas terras indígenas para meter bois e vacas em cima de seus cemitérios.
Pressionada pelas fazendas, a diáspora guató se instalou na periferia de Corumbá. Eufrásia também foi para a cidade. No início, trabalhou como faxineira de restaurante de turista – colonizadores travestidos de visitantes. Depois, foi babá e “doméstica” de uma professora. Isto tudo sem carteira, lembrando que “doméstica” era uma denominação para uma qualidade de escrava. Trabalhou muitos anos, sem remuneração, como força de trabalho ‘auxiliar’ responsável pela ordem doméstica de seu segundo esposo. Só no fim da vida teve uma renda própria, pela aposentadoria. Entretanto, Eufrásia nos informava que igual a sua mãe, que era pura índia, não sabia mexer em dinheiro.
A última vez que vimos Eufrásia foi em março de 2020. Nesta época, o medo da pandemia causou efeitos na rotina da cidade de Corumbá, onde Eufrásia morava. Havia toque de recolher, mesmo antes de casos terem sido confirmados. O medo da perda era inevitável, por se tratar de amigos idosos. Nunca mais veríamos nem ela, nem seu esposo, também falecido. Nossa esperança de voltar a ver o bom humor de Eufrásia em Corumbá, agora se converte em luto. A cidade que se diz “branca” agora será para sempre nostálgica.
A mãe de Eufrásia, pura índia que falava português por rumo e não sabia mexer em dinheiro, perdera todas suas irmandades para o sarampo, pouco antes de Eufrásia nascer, na década de 1940. Eufrásia perdeu também primos e tios para a doença.
No ano de 1925, o etnólogo Max Schmidt voltava para o Pantanal, após 20 anos sem estar no lugar. Queria saber de um menino chamado Méki, que tinha sido seu guia na viagem anterior. Descobriu que, como tantos guatós, Méki tinha perecido em uma das tantas epidemias que devastaram as populações indígenas brasileiras. O finado Schmidt, então, anotou várias vezes a sorte dos parentes daqueles guatós: matchoga ‘já morreu’.
A morte é provavelmente a grande questão antropológica. Todas as outras parecem irrelevantes diante de sua estatura e nenhum outro problema é mais saliente no pensamento humano. Afinal, morrer é um universal absoluto que compartilhamos com todos os seres vivos. Mas em todas as eras, por todos os povos, a morte foi e é negada. É tão difícil conceber o fim da vida que as culturas postulam diversos descaminhos pós-morte. Grandes civilizações lutaram contra a morte, querendo domesticá-la. É o exemplo de um povo vizinho dos guatós, os Bororo, que dedicam toda sua potência ritual por encenar o caminho das almas.
Vicente, patrício de Eufrásia, o homem mais fluente em guató que ainda vive, nos explicou que quando uma pessoa morre, não pode queimar o campo, uma formação vegetal das mais comuns no Pantanal. Não pode, porque o incêndio é capaz de queimar a alma do morto, que continua por um tempo a circular nos lugares onde passou em vida. O Pantanal agora arde em chamas queimando vivos e mortos em uma escala nunca antes vista.
Pouco antes de conhecermos Eufrásia, em 2016, seu irmão mais criança, o finado Cipriano tinha morrido em situação de rua e já degradado por anos de alcoolismo. Certa vez, comentando o aparecimento do finado Cipriano no mundo dos sonhos, Eufrásia observou: os mortos não falam. A morte é a incomunicabilidade.
Se é difícil acreditar que um ente querido possa cair eternamente no vazio da morte, há uma questão mais complicada: a da morte das línguas. Ao contrário do português neobrasileiro, toda língua originária desta Terra dita Brasil sente, em diferentes níveis, o amargo sabor da morte.
Antes de Eufrásia morrer, gravamos muitas horas de sua voz. Ao escutar, certa vez ela disse que estávamos prendendo a voz dela ali no gravador. O esposo de Eufrásia observava que existia um lugar que a alma ia depois da morte: o Esquecimento. Esperamos ter prendido uma voz que não seja perdida. E que a memória de Eufrásia não caminhe para o Esquecimento.
8 de setembro 2021
Gustavo Godoy Kristina Balykova