A Associação Brasileira de Linguística (Abralin) manifesta publicamente o seu repúdio ao texto do PL º 6.256/2019 aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 5 de dezembro de 2023, que desvirtua completamente o mérito do projeto original para servir de plataforma aos delírios ideológicos da maioria extremista de parlamentares.
Diante da iminência da votação do PL pelo plenário da Câmara, a Abralin, por meio da sua Comissão de Políticas Públicas, procurou a deputada Érika Kokay, autora do projeto, e iniciou diálogo com o objetivo de advertir sobre a inconsistência da proposta, que, na forma do substitutivo apresentado pelo relator, deputado Pedro Campos, reduziu a um conjunto engessado de “técnicas” supostamente universais de “Linguagem Simples” as estratégias de comunicação clara, acessível e eficaz que podem ser utilizadas pela administração pública em respeito aos direitos linguísticos da população. Na reunião com a deputada Érika Kokay, também chamamos a atenção para a arbitrariedade prevista no dispositivo que obriga os órgãos de governo a observar, em todas as suas comunicações com o cidadão, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), já que não consideramos esse instrumento normativo de caráter ortográfico como uma referência definitiva do vocabulário da língua, que, naturalmente, constitui um repertório aberto e dinâmico. A iniciativa da Abralin foi relatada em comunicado publicado em 24 de novembro de 2023 (https://www.abralin.org/site/comunicado-2/).
Na ocasião, a Comissão de Políticas Públicas elaborou e apresentou uma proposta de texto mais abrangente, com o objetivo de instituir princípios e diretrizes gerais para uma comunicação cidadã segundo os parâmetros das Ciências da Linguagem, que indicam a evidente necessidade de respeitar os direitos linguísticos que emanam da diversidade linguística e cultural do povo brasileiro e a importância de adequar a linguagem dos textos a cada situação comunicativa. Da nossa proposta, apresentada na forma de um novo substitutivo para o PL, o relator acatou apenas dois pontos: a inclusão de um dispositivo que torna obrigatório o uso de “linguagem adequada às necessidades da pessoa com deficiência” e a recomendação de uso das línguas das comunidades indígenas às quais se dirija a comunicação do Estado. No entanto, no dia da votação, após ceder a pressões do Partido Liberal e de outras legendas partidárias avessas a qualquer legislação que considere a diversidade, o relator incorporou novas alterações ao texto que resultaram, entre outras mudanças, na eliminação do dispositivo proposto pela Abralin sobre a necessidade de uso de linguagem adequada às pessoas com deficiência, na retirada do inciso que recomendava testar a efetividade dos textos junto ao público-alvo e na substituição do verbo “observar” por “respeitar” no dispositivo que menciona a atenção ao VOLP, tornando ainda mais mandatório o uso deste vocabulário.
O novo texto do relator manteve ainda intocada boa parte das recomendações definidas como “técnicas de Linguagem Simples”, que, a nosso ver, são propostas pseudocientíficas que acabam se destinando a promover um mercado de cursos de formação e de venda de apostilas elaboradas por supostos “especialistas” no uso da língua. Nesse sentido, não deve ser casual que o PL, em seu artigo 6º, obrigue todos os órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, com a única exceção dos Municípios de menos de 50 mil habitantes, a “definir, no prazo de 90 dias da publicação desta Lei, o encarregado pelo tratamento da informação em Linguagem Simples”, o qual, não necessariamente, deve integrar o corpo de servidores da instituição.
Submetida à votação do Plenário da Câmara, a subemenda substitutiva global apresentada pelo relator foi aprovada por 240 votos a favor e 180 contra. Posteriormente, na fase de votação dos destaques, foi aprovada emenda apresentada pelo deputado Junio Amaral, que ganhou as manchetes dos principais veículos de imprensa do país ao introduzir a proibição de usar “novas formas de flexão de gênero e de número (sic) das palavras da língua portuguesa em contrariedade às regras gramaticais consolidadas, ao Vocabulário da Língua Portuguesa (VOLP) e ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008)”. Com esse adendo ao texto, aprovado por uma margem de votos ainda maior (257 a favor e 144 contra), torna-se evidente que o verdadeiro objetivo estratégico da maioria ultraconservadora da Câmara era usar o PL º 6.256/2019, originalmente um projeto inclusivo de uso da linguagem, como mais uma batalha de uma suposta guerra cultural contra o fantasma da “linguagem neutra”, distorcendo completamente o objetivo da proposta, que tratava de buscar formas de tornar mais clara e eficaz a comunicação entre governo e sociedade.
A Abralin já se manifestou em ocasiões anteriores em relação a esse tipo de proibição, como na nota pública contra a aprovação de uma lei desse teor pela Assembleia Legislativa de Rondônia (https://www.abralin.org/site/nota-publica-lei-n-5-123/). Nesta ocasião, a confusão entre flexão de gênero e de número, o absoluto desconhecimento do que sejam “regras gramaticais consolidadas” e a idealização da ortografia como representação da língua, comuns nesse tipo de proposta, cumprem o único objetivo de conquistar manchetes, em mais um capítulo lamentável de luta extremista contra a diversidade.
A Abralin expressa a sua completa discordância em relação ao texto PL º 6.256/2019 aprovado no último dia 5 de dezembro e se coloca novamente à disposição do Congresso Nacional para discutir, na fase de tramitação no Senado Federal, uma proposta de comunicação pública verdadeiramente cidadã, clara, acessível e eficaz, que esteja de acordo com os princípios do conhecimento científico da linguagem e com a defesa enfática dos direitos humanos e dos direitos linguísticos.